O Salazarismo

Feita a proclamação do regime liberal em 1834, a guerra civil continuou, porque havia, na verdade, dois liberalismos : o “cartista”, cujo texto era a Carta “doada” pelo Rei, e o democrático ou constitucionalista, que tinha por base a constituição instaurada supostamente pelo povo, isto é, pelos seus autoproclamados representantes ou “deputados”.

 

Em 1851, houve uma trégua e o poder passou a ser partilhado alternadamente pelos dois partidos: um, o conservador, sob o nome de “regenerador”, o outro, o democrático, sob o nome de “progressista”. Durante esta trégua fez-se a europeização, ou seja, a política de obras públicas, sob a forma de estradas e caminhos-de-ferro. Entrou no País muito dinheiro pela via de investimentos para financiação de obras públicas, investimentos que vinham de fora e que se pagavam com novos investimentos ou com a expectativa deles. Desta forma se foi acumulando durante décadas uma dívida externa sem que aparecessem novas indústrias ou fontes de pagamento.

 

Dois homens, dois pilares humanos, davam estabilidade ao sistema : os chefes dos partidos, Anselmo Braamcamp (progressista) e Fontes Pereira de Melo (regenerador). A morte dos dois homens, com breve intervalo, abriu o campo à luta pela sucessão nas chefias, ao apetite de mando, à divisão dos dois partidos em grupúsculos.

 

A República foi provocada por este estado de coisas, a que só deu uma solução aparente e novamente verbal. Passou a haver um único grande partido em condições de governar, o Partido Republicano Português (PRP), mas debaixo dele agitavam-se incessantemente os grupúsculos que recorriam ao golpe de Estado quando se lhes oferecia a ocasião. Sendo, nesse tempo, metade do país (grosso modo) monárquico, só havia legalmente no Parlamento deputados republicanos.

 

O golpe militar de 28 de Maio de 1926 tinha atrás de si estas causas de instabilidade que tornavam impossível a efectivação de qualquer plano de governação. A difícil situação financeira herdada da Monarquia teve um momento de alívio expresso num orçamento severo apresentado pelo chefe “democrático” Afonso Costa, mas voltou a agravar-se catastroficamente com a nossa participação na Grande Guerra em ajuda daqueles mesmos que nos tinham humilhado com o “ultimatum” que motivara a insurreição republicana de 31 de Janeiro de 1891. Este complexo de causas, que a constituição parlamentar de 1911 amplificava favorecendo a acção aos partidos, criou uma situação inextrincável que os militares do 28 de Maio não souberam resolver.

 

Um dos propósitos do 28 de Maio era “redistribuir as cartas” de forma a pôr termo ao monopólio político do PRP que viera substituir o monopólio dos dois partidos alternantes, que vigorara na Monarquia (Regeneradores e Progressistas). Mas, em primeiro lugar, era necessário acudir à urgência financeira, problema cada vez mais preocupante. Foi o equilíbrio do Orçamento, nas vésperas da crise mundial de 1930, que granjeou o prestígio de Oliveira Salazar. Mas fica por resolver o grande problema político, que se pode resumir em dois pontos :

1- Pôr fim ao monopólio do partido único (o PRP), que existia, de facto, de modo a permitir, por via legal e normal, outras opções partidárias.

2- Tornar viável a participação na vida política da massa monárquica, ilegal como partido e que se manifestava de maneiras ilegais e conspirativas.

 

Resolvendo estas duas questões, afastavam-se as duas principais causas da instabilidade política do País. Pelo menos assim se julgava.

 

A nova constituição plebiscitada em 1933 propunha-se resolvê-los. Segundo a nova constituição (a de 1933), a soberania não residia no “povo”, entidade quantitativa e informe, mas sim “em a Nação” e a Nação era uma entidade orgânica, com os seus órgãos próprios, competentes cada um para resolver os seus problemas. Por isso, o regime instituído pela Constituição de 1933 foi chamado de “democracia orgânica”, designação que o próprio Salazar não inventou, pois que Oliveira Martins, na geração anterior, a tinha aplicado a um sistema semelhante, que só existiu no papel (opúsculo “As Eleições”, 1872). O que Salazar contestava, como Oliveira Martins já o fizera, era a capacidade de o sistema “um homem-um voto” para resolver os problemas concretos do País. O que a sua Constituição pretendia era o voto qualificado e representativo das estruturas ou órgãos do País.

 

A instituição da União Nacional , como ele próprio sustentou, não era a criação de mais um partido, mas uma tentativa para resolver um difícil problema que já resumimos em dois pontos : primeiramente integrar na vida política nacional a massa monárquica sem afugentar os republicanos; em segundo lugar, retirar ao PRP o monopólio político que oficialmente detinha. Na intenção, a União Nacional era uma organização que devia permitir a todos os Portugueses participarem na vida política independentemente dos Partidos, e não um “partido único”, como os factos vieram a fazê-lo.

 

Salazar foi, sem dúvida, um dos homens mais notáveis da História de Portugal e possuía uma qualidade que os homens notáveis nem sempre possuem: a recta intenção.

 

A sua Constituição é, sem dúvida, lógica e geometricamente exemplar. Ele não foi o único a constatar os defeitos – não só na prática, mas também na teoria – do sistema político vigente antes de 1926. Era um sistema que se baseava num método que nas ciências humanas conduz sempre inevitavelmente a soluções erradas: o método quantitativo. A qualidade das soluções nunca depende da quantidade dos votos. Mas o sistema constitucional óptimo, ou antes, melhor, só existe subjectivamente; coincide com a vontade do criador. E é evidente que, por isso mesmo, é impraticável. Uma Constituição Ideal é sempre uma utopia. Enquanto Salazar foi vivo disse eu duas ou três coisas que me pareciam evidentes. Uma, era sobre o regime corporativo: pensava eu que as corporações eram uma instituição medieval, incompatível com o século XX. Estava enganado, porque vemos, cada vez mais os problemas serem resolvidos por métodos corporativos, por acordos entre patrões e operários ou por greves, também entre corporações. Por negociação entre entidades cada vez mais poderosas; “lobbies ou alianças sindicais. O problema agrava-se com as concentrações maciças de indivíduos e de capital.

 

Outra parece-me cada vez mais evidente e, por isso mesmo, põe problemas cada vez mais graves. A abolição dos Partidos Políticos supõe a criação de instrumentos que impeçam o seu aparecimento e crescimento, isto é : uma censura dos meios de comunicação e uma polícia que mantenha dentro de certos limites a faculdade de associação e de reunião. A repressão é inevitável num regime de liberdade vigiada, mesmo que seja para impedir o Partido Único.

 

O problema só tem uma solução no plano da subjectividade, ou seja, no plano das intenções do legislador. Se o árbitro é bem intencionado, não precisa de regras obrigatórias, mas há um profundo ditado popular que diz que das intenções só Deus sabe. Além disso, é óbvio que as regras constitucionais estabelecidas por um legislador estão destinadas pela força das coisas a ser aplicadas por outro ou outros. Por isso, as constituições precisam de ser feitas por homens medianos, intelectual e moralmente, e não podem ser entregues a homens rigorosos e muito competentes.

 

Era essa, possivelmente, a grande virtude e o grande defeito de Salazar : o rigor talvez excessivo consigo mesmo e com os outros. Quem lê os seus “ Discursos e Notas” fica subjugado pela limpidez e concisão de estilo, a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em Língua Portuguesa, atravessada por um ritmo afectivo poderoso. Por esse lado, a prosa de Salazar merece um lugar de relevo na História da Literatura Portuguesa ( e só considerações políticas até agora a têm arredado do lugar que lhe compete). É uma prosa que guarda a lucidez da grande prosa do século XVII, e donde é banida toda a nebulosidade, toda a distracção, toda a frouxidão, tudo o que frequentemente torna obscura ou despropositadamente ofuscante a prosa dos nossos doutrinadores.

 

Essa prosa vem das melhores fontes do século XVII, o século lúcido entre todos, o século de Pascal. Do mesmo século herdou Salazar a sua utopia política. A sua utopia política foi o que se chama o “despotismo esclarecido”, de que é exemplo em Portugal o reinado de D. José, com o Ministro Pombal. Salazar não disputou o Governo, não adulou eleitores. Recebeu o Governo de quem o podia dar, isto é, do soberano. Nesse momento, o soberano era o poder militar saído de uma sublevação triunfante. Salazar tornou-se seu Ministro, como Pombal se tornou Ministro de D. José. O poder militar teve sucessivos protagonistas – Carmona, Craveiro Lopes, Almirante Tomaz – formalmente legítimos, e Salazar, recebendo deles a investidura, considerava-se um Primeiro-Ministro legítimo. “ A soberania é um facto, não é um direito” – escreveu uma vez, numa carta, Alexandre Herculano. É um facto a soberania hereditária dos Reis, como a soberania revolucionária das Juntas Militares.

 

Deu-se, graças a este sistema, congeminado e executado por Salazar, uma coincidência entre a Lei e o Legislador que, só ele sabia a intenção da Lei e, para além disso, possuía qualidades de administrador miraculosamente raras, junto a uma igualmente rara integridade. Conseguiram-se coisas, hoje inconcebíveis, como a neutralidade na II Grande Guerra e, passando aos pormenores, a realização de uma extraordinária exposição internacional, a melhor exposição que se fez em Portugal, inaugurada conforme o programa, em 1940, apesar de a guerra ter rebentado no Verão anterior, da ocupação de Paris pelos alemães, de estar em curso o bloqueio comercial à Inglaterra, etc. Refiro-me à Primeira Exposição do Mundo Português. Conseguiu-se também, pela primeira vez desde Pombal, pôr fim à tutela inglesa, que fora confirmada com sangue, na 1ª Guerra Mundial. E hoje vemos, com uma dura clareza, como o período da nossa história a que cabe o nome de Salazarismo foi o último em que merecemos o nome de Nação independente. Agora, em plena “democracia” e sendo o Povo “soberano”, resta-nos ser uma reserva de eucaliptos para uso de uma obscura entidade económica que tem o pseudónimo de CEE.

 

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FonteAntónio José Saraiva, in semanário “Expresso”, 22-04-1989.